PHILIPPE PERRENOUD
Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação
Universidade de Genebra
Tradução: Neide Luzia de Rezende
RESUMO
O artigo discute os problemas, impasses e possibilidades da organização da escola em ciclos de
aprendizagem destacando que não basta a adesão ideológica para que ela se concretize. A sua
efetivação exige novas competências, contexto em que se coloca a temática da formação e
profissionalização do professor.
ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO . FORMAÇÃO DE PROFESSORES . APRENDIZAGEM .
DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO
ABSTRACT
PROFESSIONALIZATION OF THE TEACHER AND THE DEVELOPMENT OF LEARNING CYCLES. The
article discusses the problems, impasses and possibilities for organizing school into learning periods,
pointing out that ideological adhesion is insufficient for such organization to be realized. Its effectiveness
demands new competence, a context into which the theme of training and professionalization of the
teacher is placed.
Cadernos de Pesquisa, nº 108, p. 7-26, novembro/1999
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Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
A organização da escola em ciclos de aprendizagem, principalmente a primária, está
sendo discutida em vários países desenvolvidos. Em alguns sistemas escolares ela já foi adotada
no papel, mas sua implementação tem sido apenas parcial. Em outros planejou-se uma
implantação progressiva entre 1995 e 2005, como na Bélgica e no cantão de Genebra.
Outros, ainda, fizeram experiências limitadas, que resultarão talvez numa lei de orientação à
francesa ou numa extensão progressiva à maneira belga ou suíça, ou quem sabe ainda num
terceiro caminho.
Qualquer que seja o processo e seu nível de desenvolvimento, a organização da
escola em ciclos de aprendizagem permanece ainda como um projeto, uma vez que nenhum
sistema educacional de fala francesa conseguiu implantar em larga escala uma escola
sem séries que promova apenas ciclos de aprendizagem para serem percorridos em dois,
três ou quatro anos. O que se observa por ora é principalmente uma vontade de acabar com
as barreiras das séries adjacentes, de tornar as progressões mais fluidas, abolindo ou limitando
a repetência, de levar os professores a gerir um ciclo de maneira solidária, mediante um
trabalho de equipe, se possível, no interior de um projeto da escola. Enfim, falando claramente,
os ciclos são, por enquanto, apenas uma intuição; não somos capazes ainda de concebê-
los e fazê-los funcionar promovendo uma ruptura clara e definitiva com a segmentação do
curso em anos letivos com programas definidos. Embora tenha havido aqui e ali experiências
de escolas sem séries desde o início do século, não se dispõe, no entanto, de nenhum
modelo verdadeiramente convincente. Parece que as organizações pedagógicas desseriadas,
em funcionamento nos países escandinavos e em outras regiões européias, não podem ser
transpostas com facilidade para sistemas nos quais os conteúdos dos saberes têm um lugar
importante e onde há uma forte seleção escolar no segundo grau (Perrenoud, 1996f, 1996g).
Encontramo-nos, pois, pelo menos nos países francófonos, numa dinâmica de inova-
ção bastante particular: é necessário desenvolver o sistema educacional, em larga escala,
numa direção determinada, mas sem dispor de um modelo preciso de referência em direção
ao qual possamos caminhar em etapas. A inovação em larga escala toma então a forma de
uma .pesquisa-ação., envolvendo todos os atores do sistema em vez da difusão de um
modelo completo já testado no interior de uma experiência piloto.
Podemos nos perguntar por que nesse caso não se procede segundo o método
habitual: aplicação em escolas experimentais e depois generalização. Sem dúvida é porque
aos poucos se compreendeu que esse modelo só funciona, na realidade, para inovações
essencialmente tecnológicas, impostas por um poder forte. Quando se trata de modificar as
práticas pedagógicas, nos defrontamos com resistências ativas ou estratégias de fuga de atores
suficientemente autônomos e hábeis para rejeitar . aberta ou veladamente . toda inovação
vinda de fora, a menos que lhes ofereçamos a possibilidade e o poder de se apropriarem
delas e de as reconstruírem no seu contexto. Não se pode mudar as representações, as
práticas, as culturas profissionais por decreto. Se conseguimos, graças a condições favoráveis,
construir essa mudança em pequena escala, o problema de sua generalização persiste. Sabe
de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
se que é inútil querer transmitir modelos pensando que eles serão espontaneamente adotados
por todo ator informado e de boa vontade que busca uma solução racional para o mesmo
problema.
Ao reunir, numa pequena escola alternativa, uma dúzia de professores experientes,
bem formados, determinados, seduzidos pela idéia dos ciclos de aprendizagem, teríamos a
oportunidade de nos livrar definitivamente do curso por programas seriados, de conseguir
individualizar o percurso de formação dos alunos e dirigir suas progressões diferenciadas
durante todo um ciclo. Teríamos então um funcionamento baseado na experiência bem
como os saberes provenientes dela, que poderíamos tentar descrever e propor a outras
escolas. É preciso simplesmente admitir que esse modelo, longe de poder ser simplesmente
adotado, poderia alimentar e acelerar um processo original de cada estabelecimento. Para
que essa apropriação fosse possível seria necessário ainda criar um clima favorável e poder
contar com a receptividade às idéias vindas de fora...
Não nego a pertinência da idéia de uma divisão do trabalho no âmbito do processo de
inovação. Nem todo mundo pode se esforçar na mesma medida. Digo apenas que é preciso
romper com a idéia simplista de que uns inventam e outros aplicam. Isso não impede que se
distingam fases em todo processo de mudança planificada.
Nesse sentido, a renovação genebrina do ensino primário propõe uma fase de
exploração intensiva de quatro anos, durante a qual cerca de quinze escolas vão elaborar e
experimentar propostas novas, e uma fase de extensão progressiva que atingirá aos poucos
o conjunto dos outros estabelecimentos. Essa renovação se desenvolve em torno de três
eixos, que é interessante lembrar aqui, já que se trata de criar ciclos de aprendizagem:
1. individualizar o percurso de formação;
2. aprender a trabalhar melhor em conjunto;
3. colocar as crianças no centro da ação pedagógica.
Esses eixos indicam direções de pesquisa, não soluções prontas:
. .Individualizar o percurso de formação. não significa evitar a separação das séries,
nem criar verdadeiros ciclos de aprendizagem; o essencial é que cada um progrida
com total êxito, sendo constantemente exigido em relação à sua zona de
desenvolvimento proximal; procura-se, pois, uma via intermediária entre uma
condescendência excessiva, que deixaria o aluno entregue a si próprio e ao seu
.ritmo natural., esperando que o tempo produza um improvável milagre, e a
arregimentação numa marcha forçada que não leva em conta as possibilidades
reais dos aprendizes; essa via intermediária é uma via estreita, difícil de conceber
e mais ainda de realizar.
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Cadernos9Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
•
profissional não se consegue por decreto; ela se aprende, se quisermos, às vezes
laboriosa e dolorosamente; por outro lado, ela se vincula mais a uma cultura
profissional do que a estruturas formais; é inútil decretar administrativamente que
o corpo de professores forme uma equipe, pois constrói-se uma pura ficção e
mascara-se uma realidade que é muito mais nuançada (Perrenoud, 1993c); há
inúmeras formas de cooperação, do individualismo acerbo à fusão militante, o
importante é que cada uma corresponda às possibilidades e às aspirações das
pessoas envolvidas.
.Aprender a trabalhar melhor em conjunto. indica uma direção; a cooperação
•
executá-lo, e, para começar, abandonar a crença .nunca fomos capazes de
executá-lo.. Amar as crianças e se preocupar com o futuro delas não é ainda
colocá-las no centro da ação pedagógica; não é uma questão de sentimento,
mesmo se o respeito e o amor pelas crianças não sejam prejudiciais, mas de
didática, de abordagem construtivista da aprendizagem, da síntese entre a água e
o fogo: conservar intacto o desejo de aprender estruturando as situações de
aprendizagem de modo a garantir efeitos de formação. Mais uma vez, não se trata
aqui de um modelo didático preciso, mas de uma direção de pesquisa.
Ao final da fase de exploração intensiva, as quinze escolas implicadas não terão desenvolvido,
segundo os três eixos, um modelo de organização e funcionamento suficientemente
unívoco e pertinente para que seja imposto a todas as escolas primárias do sistema com a
palavra de ordem: juntem-se a nós! A fase de extensão progressiva que se abrirá então . se
as conjunturas políticas e financeiras e os conflitos sociais que elas engendram o permitirem .
será uma fase de pesquisa e desenvolvimento voltada, agora, para o conjunto das escolas
primárias. Pode-se simplesmente esperar que as tentativas e reflexões da fase de exploração
intensiva tenham encerrado o leque das hipóteses de trabalho, detectado alguns impasses,
desenvolvido alguns instrumentos, conceitos, conhecimentos e métodos passíveis de serem
utilizados por outros e propiciado uma revisão de textos portadores de estruturas e de
currículos mais favoráveis à individualização do percurso, à cooperação profissional e à centraliza
ção no aprendiz.
Esse modelo de mudança não é unânime, sem dúvida. Ele pode mesmo se defrontar
com a oposição tanto daqueles que não querem nada mudar e quanto dos que não compreenderam
que não se muda a escola mediante novas leis, mesmo se bem-feitas, mas por uma
evolução das representações e das práticas, conduzida com coerência e perseverança durante
pelo menos dez anos. Entretanto, as reformas espetaculares que não deixam traços
têm um belo futuro ainda, pois elas podem fazer a felicidade tanto dos políticos que querem
deixar a sua marca na escola quanto da fração mais conservadora dos professores, que sabem
.Colocar as crianças no centro da ação pedagógica. é um princípio já banal; restanos
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que basta abaixar a cabeça sob a tempestade e esperar as próximas eleições para que os
ventos mudem...
Não me refiro aqui a uma visão da mudança que o sistema político e o educacional
teriam claramente adotado. Ao mesmo tempo, as trajetórias genebrinas e belgas sugerem
que certos sistemas, baseados na experiência das últimas décadas, não acreditam mais na
magia das reformas relâmpagos e tentam planejar a mudança pensando-a ao longo de várias
administrações.
Mudemos agora de registro. Não se trata de generalizar uma fórmula testada em
pequena escala, mas de pôr o conjunto do sistema educacional em movimento. É melhor
então conduzir um processo de inovação em larga escala, que autorize e encoraje cada
escola a progredir, sem reinventar a roda, mas sem adotar um modelo pronto, numa espécie
de alternância entre momentos de imitação inteligente e momentos de invenção.
A dificuldade dessa estratégia está no fato de que a reorganização da escola em ciclos
de aprendizagem não supõe apenas uma adesão ideológica seguida de uma passagem ao ato.
Essa passagem exige novas competências e uma outra relação com a profissão. Deparamonos,
pois, com um problema de nível de formação dos professores e, sobretudo, com a
questão da sua profissionalização. Essas questões serão abordadas nos dois capítulos principais
deste artigo.
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REFORMAS DO TERCEIRO TIPO E FORMAÇÃO DOS PROFESSORES
As reformas de estrutura e de programas são legítimas, mas elas só dão frutos se
acompanhadas por novas práticas. Toda reforma importante é em última instância uma
reforma de terceiro tipo (Perrenoud, 1990) que se dirije aberta e institucionalmente para o
cotidiano dos alunos e professores nas classes e nas escolas. As reformas do primeiro tipo
referem-se às estruturas escolares em sentido restrito: etapas, organização do curso. As
reformas de segundo tipo transformam os currículos. Hoje, isso não é suficiente, é preciso
atingir as práticas, a relação pedagógica, o contrato didático, as culturas profissionais, a colabora
ção entre professores. Não nos enganemos, a introdução dos ciclos de aprendizagem é
uma reforma do terceiro tipo, ainda que aparentemente ela se apresente como uma reforma
de estrutura e de currículo. No final das contas, são as práticas profissionais que é preciso
transformar. Os valores, as atitudes, as representações, os conhecimentos, as competências,
a identidade e os projetos de cada um são, portanto, decisivos. Trata-se daquilo que os
tecnocratas chamam de .fator humano., que passa pela formação.
Reformas do sistema educacional e formação inicial
O que nos ensina o fracasso parcial de quase todas as reformas escolares, além das
diferenças de contexto e de conteúdo? Que a mudança quase sempre foi pensada para um
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Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
corpo de professores que ainda não existia, pelo menos em larga escala, no momento
decisivo. É por isso que os professores de hoje na sua maioria não estão dispostos, nem
preparados para praticar uma pedagogia ativa e diferenciada, envolver os alunos no andamento
dos projetos, conduzir uma avaliação formativa e trabalhar em equipe.
O balanço das reformas escolares mais ambiciosas é em geral mitigado. Incrimina-se
a formação dos professores, suspeita de não estar .à altura.. Daí, chegar a sonhar com uma
preparação específica para dada reforma, projetada ou em curso, é só um passo, logo
realizado. Por que não associar a toda reforma uma formação inicial coerente, fornecendo ou
desenvolvendo as competências requeridas? Ora, é preciso cair na realidade: são necessá-
rios muitos anos para pôr em prática uma renovação importante da formação inicial dos
professores. Em geral, é o tempo necessário para que uma reforma escolar afunde ou seja
esquecida! Ademais, se ela fosse feita em tempo, uma renovação da formação inicial só
atingiria, de imediato, uma fração marginal do corpo docente; seriam .os novos professores.,
cujos sonhos de mudança estariam, de resto, desde sua entrada na função, fortemente
temperados pela cultura profissional em vigor na maioria das escolas.
Quer dizer com isso que não se deve atuar na formação de professores? Em absoluto.
Mas seria bom que nos inspirássemos no discurso de um médico homeopata quando consultado
por causa de uma forte gripe. Ele diz que pode atenuar os sintomas, mas que é tarde
demais para intervir nas causas profundas. Mas ele nos tranqüiliza: fizemos bem em procurá-
lo, porque haverá tempo de impedir a próxima gripe, reforçando nossos próprios mecanismos
de defesa.
As reformas escolares são indicadores preciosos da defasagem entre a formação dos
professores e o que se julga que eles podem fazer hoje. Essa defasagem não pode ser
resolvida no momento. Mas podemos antecipá-la e tentar atenuá-la para a .próxima vez..
Ora, pode-se argumentar que é agora que se necessita de competências, a próxima vez será
uma .outra vez., que exigirá outras competências em um outro contexto. Isso seria subestimar
o fato de que as reformas escolares sucessivas se confrontam em larga medida com os
mesmos problemas: a desigualdade das oportunidades, o fracasso escolar, a dificuldade de
encarar a heterogeneidade, de diferenciar a ação pedagógica, de tornar a avaliação mais
formadora, de dar sentido ao trabalho escolar, de inserir os alunos em projetos, de individualizar
os percursos de formação, de abrir a escola para a vida, de tornar a pedagogia mais ativa
e participativa, de construir a cidadania, de generalizar a cooperação etc. Cada época traz
uma linguagem nova para exprimir os problemas. E cada reforma define esses problemas a
sua maneira, levando em conta o espírito do tempo, estilos pedagógicos dominantes, conjuntura
econômica e demográfica, relações entre forças políticas e sindicais. Essas singularidades
não deveriam mascarar o essencial: repensa-se o trabalho, porque o resultado não foi
satisfatório.
.Dá pra melhorar!., é o motor das reformas escolares. Philippe Meirieu ironiza dizendo
que a escola faz reformas enquanto a medicina faz progressos. A diferença é talvez menor
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do que a fórmula sugere, pois as reformas educacionais, como os progressos da medicina, são
respostas, sempre limitadas e insatisfatórias, a questões fundamentais, que voltarão a surgir
enquanto não forem resolvidas. As reformas escolares participam da busca do Graal e apresentam,
desse ponto de vista, a vantagem de continuidade que sugerem as palavras de
ordem do momento. Tive a oportunidade de analisar em outro trabalho (Perrenoud, 1996b)
os .velhos demônios da escola., dentre os quais a exclusão como resposta à heterogeneidade,
a indiferença às diferenças, a pedagogia da transmissão ou o furor pedagógico. Cada reforma
prioriza alguns deles, mas todos estão ligados.
Podemos pensar em uma certa coerência a longo prazo das reformas do sistema
educativo e em renovações da formação inicial, mas não é realista esperar sincronizar as
mudanças no curto espaço de tempo de uma reforma do sistema educacional, como procurei
mostrar mais detalhadamente em outra ocasião (Perrenoud, 1996h). Desse modo, é
importante que a formação inicial se volte para as políticas de educação no sentido de:
13
•
docente em serviço;
atualizar os professores iniciantes, isto é, fazê-los avançar em relação ao corpo
•
De fato, quem acreditaria numa política de educação cujas instituições de formação
inicial não se mostrassem globalmente solidárias? Seria o sinal de uma divisão de forças ou de
uma retórica reformadora sem força sobre os atores.
reforçar a credibilidade do .discurso da reforma..
Reformas do sistema educacional e formação continuada
As transformações da formação de professores podem significar algo mais do que
sinais da vontade de reforma? A formação continuada parece uma alavanca de transformação
mais fácil de acionar a curto prazo. Ela poderia, pois, mais do que a formação inicial, estar .em
sintonia. com as reformas educativas do momento. Mas isso não é assim tão simples, pois nos
defrontamos com mais um paradoxo: não se pode esperar que a formação continuada sendo
ainda debilmente implantada num sistema educacional exerça uma influência maciça sobre o
corpo docente em serviço; porém, ao contrário, se ela for fortemente desenvolvida,
institucionaliza-se e burocratiza; corre-se o risco de que siga a tendência de toda organização:
tornar-se um Estado dentro de um Estado, mais preocupada em garantir seu próprio desenvolvimento
do que servir a uma política de conjunto (Perrenoud, Montandon, 1988).
Mesmo se o governo ou outros poderes têm a legitimidade e a autoridade suficientes
para mobilizar os organismos de formação continuada na direção das reformas, seria ingênuo
esperar que os formadores detenham a solução de todos os problemas. Eles podem, no
máximo, contribuir para refletir sobre e acompanhar a busca coletiva de soluções. Quando
uma empresa adota um sistema de tratamento de textos ou de dados, ela envia seu pessoal
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em formação para uma instituição cujos formadores detêm o domínio desejado. Sua única
tarefa é compartilhá-lo. As reformas escolares colocam um problema inteiramente diferente:
as competências e conhecimentos requeridos não estão lá à espera de que o corpo docente
venha se apropriar deles. Os formadores não os detêm, eles têm, quando muito, alguns
meios suplementares de contribuir para seu esclarecimento e sua construção. Encontram-se
na situação dos médicos de hoje a quem se pediria prevenir ou curar a AIDS: os professores
de medicina não se encontram mais avançados do que os próprios médicos em serviço.
Aqueles estão mais ligados à pesquisa, mas como compartilhariam soluções que ninguém
ainda encontrou?
Essa impotência é reforçada pela sociografia particular do corpo de formadores no
campo escolar: a formação continuada é largamente oferecida por professores que trabalham
meio período ou que se liberaram das aulas há pouco. Esse fenômeno é mais acentuado no
segundo grau do que no primeiro, provavelmente em razão das atitudes dos professores do
segundo grau, responsáveis por uma resistência maior para admitir os aportes das ciências da
educação e mesmo das didáticas das disciplinas e um desejo manifesto de .não receber lições
de pedagogia de ninguém.. Os formadores de formação continuada são, pois, no segundo
grau, com maior freqüência, colegas que estão apenas um pouco à frente daqueles que eles
formam. Encontram-se, de certo modo, na mesma situação das escolas rurais que, no último
século e, em certas regiões, ainda hoje, .herdaram. de um educador um pouco mais instruí-
do do que seus alunos maiores, que se informava na última hora, lendo os manuais às
vésperas da aula... Conhecemos também o modelo inverso: certos formadores distanciamse
de seu meio profissional de origem para construir uma identidade puramente teórica e
oferecer a seus antigos colegas um discurso tão abstrato que não ajuda ninguém.
No ensino fundamental, a globalidade do desenvolvimento e das aprendizagens
favoreceu uma abertura maior às ciências humanas e uma acumulação de experiências que
a separação disciplinar desencoraja. Uma parte dos formadores apresentam pois um nível de
formação claramente superior à média de seus colegas tendo buscado num mestrado de
ciências da educação uma legitimidade e uma formação universitárias que seus colegas do
ensino médio já se crêem portadores.
No entanto, mesmo no caso de um desempenho favorável, a formação continuada,
assim como a jovem mais linda do mundo, só pode oferecer aquilo que tem. Ela faz parte do
sistema educacional e não pode ter dez anos de avanço em relação à identificação e à
resolução dos problemas. Pode, contudo, contribuir de maneira decisiva para o sucesso de
uma reforma, sob duas condições:
•
fazer com que as ofertas de formação se voltem rapidamente para a reforma;
•
reagrupamento e acompanhamento de projetos, a partir da análise das práticas e
das necessidades.
dirigir-se às escolas e encontrar uma via de mediação dentre formas clássicas de
Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
Uma tal evolução demanda mais do que alguns meses. É importante, pois, que os
formadores e as instituições de formação continuada sejam, sempre que possível, associados
à gênese das reformas e possam antecipá-las no seus planos de formação.
Em Genebra, como em outros sistemas educacionais, o encaminhamento para a
formação nas escolas está em alta. Pode estar ocorrendo um modismo e uma nova norma:
após terem sido oferecidos exclusivamente cursos fora das escolas, a formação continuada
parece, em certos sistemas, orientar-se inteiramente para a intervenção nas escolas. Tais
movimentos polarizadores são excessivos, algumas modalidades podem e devem coexistir.
Em todos os casos, só nos resta apoiar e suscitar situações favoráveis à mudança de representa
ções e de práticas: o redirecionamento para as escolas fornece alguns trunfos suplementares
para adentrar a complexidade, mas suscita igualmente resistências e não provoca milagre
algum... Além do mais, se possibilita, por um lado, uma melhor observância das dinâmicas
locais e propostas de formação sob medida, não modifica necessariamente a substância das
contribuições dos formadores. Transferir um curso de didática para o interior de uma escola
não é suficiente para torná-lo mais adequado!
Mais que um redirecionamento, trata-se de trabalhar na junção de duas correntes
num primeiro momento separadas: de um lado a intervenção na escola, às vezes para
desfazer um conflito ou uma crise, e mais freqüentemente para acompanhar a gênese ou a
evolução de um projeto; por outro lado, a resposta a necessidades de formação próprias a
uma equipe pedagógica ou uma escola. Donde a necessidade de integrar novas dimensões
à reflexão sobre a formação continuada: a reflexão sobre as práticas, o trabalho em equipe e
a cooperação profissional, as dinâmicas de escola (Gather Thurler, 1993, 1994, 1996;
Hutmacher, 1990; Obin, 1993; Perrenoud, 1994d; 1996i, j) e uma assimilação da experiência
e dos conhecimentos acumulada no campo da formação de adultos fora do mundo
escolar...
Trata-se assim de desenvolver competências mais do que transmitir conhecimentos.
Uma parte dos estágios de formação continuada propõe essencialmente teorias e métodos,
isto é, conhecimentos de natureza expositiva e procedimental, que são apenas ingredientes
de competências profissionais. Claro, todo mundo fala hoje de desenvolvimento de compet
ências. Essa linguagem de moda, falsamente familiar, leva a subestimar a amplitude da mudan
ça de perspectiva. Uma abordagem por competências requer uma reconstrução completa
dos dispositivos e dos processos de formação continuada. É possível dimensionar um
pouco melhor o problema usando o exemplo do ensino primário genebrino, que procura
desenvolver, à margem da renovação evocada e da formação inicial feita integralmente em
nível universitário (Perrenoud, 1994a, 1994b, 1996d), uma abordagem por competências
em formação continuada.
Dez grandes campos de competências foram definidos:
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1. Organizar e animar situações de aprendizagem;
2. Administrar a progressão das aprendizagens;
3. Conceber e fazer evoluir dispositivos de diferenciação;
4. Comprometer os alunos com sua aprendizagem e seu trabalho;
5. Trabalhar em equipe;
6. Participar da gestão da escola;
7. Informar e inserir os pais;
8. Usar novas tecnologias;
9. Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão;
10. Administrar sua própria formação continuada.
Cada campo se compõe de um certo número de competências mais específicas, que
mostram mais concretamente o vínculo com a individualização dos percursos ou a organiza-
ção da escola em ciclos de aprendizagem. Eis, por exemplo, o detalhamento dos quatro
primeiros campos mais centrados nos aspectos pedagógicos e didáticos; os demais dizem
respeito sobretudo às relações entre adultos:
Competências de referência Competências mais específicas a serem trabalhadas em formação
continuada (exemplos)
1. Organizar e animar
situações de aprendizagem
·
sua tradução em objetivos de aprendizagem;
Conhecer, para uma dada disciplina, os conteúdos a serem ensinados e
·
Trabalhar a partir das representações dos alunos;
·
Trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos de aprendizagem;
·
Construir e planificar dispositivos e seqüências didáticas;
·
conhecimento.
Engajar os alunos nas atividades de pesquisa e em projetos de
2. Administrar a progressão
das aprendizagens
·
possibilidades dos alunos;
Conceber e administrar situações-problemas de acordo com os níveis e
·
Adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino fundamental;
·
aprendizagem;
Estabelecer as ligações com as teorias subjacentes às atividades de
·
uma abordagem formativa;
Observar e avaliar os alunos nas situações de aprendizagem, segundo
·
progressão.
Estabelecer balanços periódicos de competências e tomar decisões de
3. Conceber e fazer evoluir
dispositivos de
diferenciação
·
Administrar a heterogeneidade no interior de um grupo-classe;
·
Eliminar a separação, ampliar a gestão de classe para um espaço maior;
·
dificuldades;
Praticar a ajuda integrada, trabalhar com os alunos que apresentam
·
ensino mútuo.
Desenvolver a cooperação entre alunos e certas formas simples de
4. Comprometer os alunos
com sua aprendizagem e
seu trabalho
·
do trabalho escolar e desenvolver a capacidade de auto-avaliação na
criança;
Suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação com o saber, o sentido
·
de escola) e negociar com os alunos diversos tipos de regras e de
contratos;
Instituir e fazer funcionar um conselho de alunos (conselho de classe ou
·
Oferecer atividades de formação opcionais, .à la carte.;
·
Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
O detalhamento pode ser encontrado no catálogo das ofertas de formação continuada
editado pelo ensino primário genebrino
ências novas, ainda marginais na definição da profissão há dez anos, ou assumidas sem ser
verdadeiramente acatadas. Essa lista não esgota a gama de competências profissionais e não
constitui portanto em absoluto um .referencial profissional. exaustivo. Ela cobre na verdade as
necessidades prioritárias quanto à renovação empreendida.
Esse referencial tem várias funções, sendo que cada uma mereceria uma discussão à
parte:
1. Constituir uma linguagem comum, mostrar as competências demandadas pela
renovação e autorizar cada um a desenvolvê-las sem .fazer de conta que. elas já
estavam implícitas ou inteiramente dominadas.
2. Insistir na noção de competência como saber-mobilizar recorrendo a recursos
múltiplos, cujos conhecimentos disciplinares e didáticos representam apenas uma
parte.
3. Convidar as instituições de formação para organizar as ofertas de formação continuada
segundo uma lógica de competências profissionais mais do que de conhecimentos
descontextualizados, sejam elas disciplinares, tecnológicas, didáticas ou
transversais.
4. Servir de referência aos inspetores e aos responsáveis pelos estabelecimentos
escolares no seu diálogo com os professores a propósito de problemas profissionais
encontrados ou no quadro de uma avaliação mais formal.
Percebe-se aqui o início de uma conexão mais forte entre reformas escolares e
formação continuada mediante a linguagem das competências. Mesmo se esta é sua ambição
e se ela busca os meios para tal, a formação continuada não pode, sozinha, transformar as
competências do corpo docente, que estão submetidas ao controle do meio profissional e da
experiência pessoal.
Por outro lado, como veremos, a organização da escola em ciclos de aprendizagem e
a individualização dos percursos demandam mais do que uma extensão das competências
dos docentes e do quadro superior. A renovação exige não apenas um enriquecimento da
formação, mas uma mudança radical do nível de formação e de identidade profissional dos
professores. As reformas exigem pois uma nova .profissionalidade docente. ou um processo
acelerado de profissionalização (Altet, 1994; Bourdoncle, 1991, 1993; Carbonneau, 1993;
Lessard, Perron, Bélanger, 1993; Perrenoud, 1994a, 1996e).
Favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno.171. Como vemos, trata-se por um lado de compet
1. Classificado como
perfectionnement, 1996.
Formation continue. Programme des cours 1996-97, Genève, Enseignement primaire, Service du
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Cadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
A PROFISSIONALIZAÇÃO DA DOCÊNCIA NO INTERIOR DAS
REFORMAS DO SISTEMA EDUCACIONAL
Ir em direção a um nível sem precedentes de competências profissionais é visar um
salto qualitativo, isto é, alcançar a identidade profissional.
Um nível sem precedentes de competências profissionais
O único objetivo das reformas é permitir aos que não assimilam os conhecimentos
escolares aprender melhor e mais rapidamente. O resto é sem interesse. Para que então
abalar o sistema se encontramos as clássicas hierarquias entre aqueles que aprendem quase
que sozinhos, não importa o sistema, aqueles que conseguem êxito com ajuda e aqueles que
são de antemão destinados ao fracasso e à exclusão?
Lutar contra o fracasso escolar é, pois, conseguir soluções mais engenhosas e mais
humanas onde a realidade resiste (Hutmacher, 1993). Para tanto, são necessários dispositivos
pedagógicos e didáticos mais complexos, mais sofisticados, mais flexíveis, para que sejam mais
eficazes. Não funcionaria sem um aumento de competência dos atores.
É possível pensar que isso é próprio de um período de desenvolvimento e que, uma
vez colocados em prática, tais dispositivos poderiam ser confiados a agentes medianamente
qualificados, como uma central nuclear que funciona sem necessidade de colocar em cada
função engenheiros de alto nível. A escola jamais funcionará como uma central, pois os
procedimentos jamais serão codificáveis no mesmo nível sobre bases científicas estabelecidas.
A parte do trabalho prescrito permanecerá marginal mesmo em estruturas escolares novas,
uma vez que as tecnologias e os sistemas inteligentes não poderão se sobrepor à inteligência
humana, essa .inteligência viva. (Cifali, 1994), com capacidade para enfrentar a complexidade,
a ambigüidade, o movimento das situações e das relações educativas.
Se quisermos atacar radicalmente o fracasso escolar, será necessário igualar o nível de
formação do corpo docente ao do corpo dos engenheiros ou dos médicos, isto é, não ao de
um corpo de teóricos ou de pesquisadores fundamentais, mas de um corpo de praticantes
reflexivos, capazes de fundar sua ação e a análise dessa ação numa cultura científica e no
conhecimento dos trabalhos de pesquisa tanto quanto em saberes profissionais coletivamente
capitalizados.
Por isso é importante:
•
mas para tornar possíveis as mais ambiciosas, fazer com que elas se dirijam cada
vez mais a um corpo docente que existe, pelo menos em parte;
repensar a natureza das formações iniciais não para .correr atrás das reformas.,
•
mais do que um simples portador de conhecimentos, de métodos ou de novas
tecnologias;
fazer da formação continuada um vetor de profissionalização (Perrenoud, 1994c)
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sem se basear numa conjunção espontânea de pontos de vista e calendários.
É a esse preço que os professores, sem reinventar a roda, tornar-se-ão co-autores
dos dispositivos pedagógicos e didáticos, e poderão conseqüentemente adequar boas idéias
provenientes da pesquisa ou da experiência dos outros à realidade de cada terreno.
introduzir dispositivos concretos de coordenação das inovações e das formações,
Uma nova identidade e um esforço de mudança
Não nos encontramos . e não sabemos se um dia chegaremos . no estágio em que
alguém sabe o que é preciso fazer para impedir o fracasso escolar. Sabemos o que não se
pode fazer, observam-se instituições promissoras, abrem-se pistas, mas o restante ainda está
para ser inventado.
1. A criatividade é indispensável, porque é impossível conceber em detalhes as
.reformas do terceiro tipo.; é útil propor textos, mas esses não são suficientes;
constituem, no máximo, .condições necessárias., as quais incitam e autorizam,
mas a avaliação formadora, as pedagogias ativas, o diálogo com as famílias não se
decretam mediante textos oficiais. Eles supõem a adesão profunda dos atores;
nenhuma das reformas escolares dos últimos anos é de fato uma resposta, pois
propõem um processo, um método e objetivos, deixando às escolas e aos professores
a tarefa de desenvolver pistas e traduzir intenções gerais em dispositivos e
em práticas.
2. A responsabilização decorre do anterior: não se pode inventar dispositivos e
práticas sem dispor de uma forte confiança, de uma delegação de poder no âmbito
de projetos de escolas e de equipes pedagógicas sólidas; nenhuma reforma obterá
sucesso se os professores não obtiverem mais poder em seu trabalho, individual e
coletivamente, não por meio de diálogo de cúpula entre as associações profissionais
e o ministério, mas num diálogo na escola entre professores, direção, parentes
e instituições organizadoras. A autonomia dos docentes é então não uma
.liberdade de contrabando., aquela de que desfrutamos de portas fechadas, por
causa da opacidade das práticas, mas uma autonomia assumida, pois os professores
são os que têm as melhores condições para decidir as modalidades de trabalho
no quadro global traçado pelos objetivos de formação e por um código de ética.
Essa autonomia não existe sem responsabilidade; qualquer tomada de posição
sobre sua profissão (
de prestar contas (
em Quebec por um bárbaro neologismo:
3. O investimento é necessário já que a construção de práticas e dispositivos alterna20
empowerment, dizem os anglo-saxões) exige um novo modoaccountability, dizem ainda os anglo-saxões, por sua vez, traduzidaimputabilité [imputabilidade]).
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tivos não ocorre sem um trabalho intenso de cooperação e de inovação, ou seja
uma ruptura, com o individualismo e a rotina. Esse investimento não se desenvolver
á se os sistemas educacionais não inventarem novas formas de reconhecimento
do trabalho das escolas, das equipes e dos docentes; reconhecimento no
sentido mais terra a terra . retorno, condições de trabalho, meios de ensino e de
inovação ., mas, também, reconhecimento simbólico, consideração, confiança,
avaliação construtiva.
O déficit maciço das finanças públicas e as políticas, em geral a curto prazo, de
governos endividados não permitem um grande otimismo quanto a isso. O .façam o máximo
com o mínimo. nunca foi muito mobilizador, com exceção talvez dos períodos mais sombrios
da história e quando a classe política se vê como porta-voz dos interesses vitais do país, como
garantia do bem comum. Poucos ministros da educação sabem, hoje, encontrar o tom com
que Churchill se dirigiu aos britânicos durante os anos terríveis da guerra.
No estado de tensão em que se encontram os atores do sistema educacional em
certas sociedades desenvolvidas, pode parecer um pouco surrealista falar de reformas, e mais
ainda de profissionalização, de práticas reflexivas, de novas competências. Portanto, se não
encararmos esses problemas vamos nos confrontar de década em década com a mesma
impotência. Nada nos assegura que voltaremos a ter um crescimento que permita dizer .sim.
a cada um. Talvez o pessoal da escola deva aceitar que o período de crescimento contínuo do
orçamento da educação seja uma época acabada, que de agora em diante será necessário
justificar os recursos investidos, mesmo quando eles aumentam. Encontramo-nos de todo
modo num paradoxo: se esperamos conjunturas favoráveis para preparar as reformas, sabemos
que elas tomarão rumos diferentes, pois, mais uma vez, não fomos capazes de antecipá-
las. É por isso que, não importa a conjuntura, é preciso um trabalho a longo prazo sobre a
profissionalização da educação e da elevação das correspondentes competências.
FAZER DA NECESSIDADE VIRTUDE
A evolução da escola transforma, a cada década, por um movimento duplo, a profiss
ão de professor: ambições crescentes, condições de trabalho cada vez mais difíceis. Em
outra oportunidade (Perrenoud, 1994a) resumi as transformações que sofrem os sistemas
educacionais: a) concentração de populações .de alto risco. em certos bairros; b) diversifica-
ção cultural e étnica dos estudantes; c) heterogeneidade crescente das conquistas escolares
a serem consideradas no interior de uma classe; d) fluidez na divisão do trabalho educativo
entre a família e a escola; e) inflação e renovação rápida dos saberes escolares e dos processos
didáticos; f) busca de objetivos de mais alto nível taxonômico, mas difíceis de ser respeitados
e avaliados; g) concorrência selvagem das .escolas paralelas., as mídias e hipermídias e as
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novas tecnologias; h) enfraquecimento dos investimentos voltados para um futuro mais distante
(
fim dos .herdeiros., alunos que trazem do berço os códigos culturais e as aspirações que
asseguram trabalho e sucesso escolar sem que a escola tenha de fazer muito esforço.
Poderíamos acrescentar, em certas zonas urbanas, a pulverização do contrato social
capaz de permitir o funcionamento das escolas e da relação pedagógica em condições mínimas
de serenidade: violência e trabalho escolar não se casam muito bem (Develay, 1996).
Essas transformações são, paradoxalmente, o prêmio para o sucesso da empresa
escolar: tendo generalizado, em seguida alongado a instrução obrigatória, que se tornou uma
passagem obrigatória para ter acesso aos diplomas e ao emprego, tendo alimentado em todos
os pais o sonho de ver seus filhos ter acesso a estudos longos, tendo preparado para cada um
.a armadilha escolar., o sistema educacional se confronta agora com as gerações formadas.
Enquanto no início do século, por exemplo, o diploma do colegial na França só era concedido
a um aluno dentre vinte, hoje pretende-se que ele seja um objetivo para todos. Não nos
surpreenderemos então de encontrar nas escolas crianças e adolescentes que, há 50 anos,
escapavam muito mais rápido da escolaridade para mergulhar no mundo do trabalho agrícola,
industrial ou doméstico, crianças que nem a origem social e familiar nem projeto próprio
preparavam para vivenciar o jogo escolar tão bem quanto os filhos da burguesia.
Ao mesmo tempo, apesar da crise econômica ou dos déficits das finanças públicas,
designa-se à escola objetivos cada vez mais ambiciosos. Não é mais suficiente aprender a ler,
escrever e contar; a complexidade das sociedades contemporâneas exige competências de
níveis mais altos para todo mundo sob pena de caminhar para uma sociedade dual, controlada
por um pequeno número de
desempregados-consumidores...
Outros setores vivenciaram transformações de amplitude semelhante, por exemplo
a mídia. Mas, diferentemente da escola, suas transformações foram trazidas por evoluções
tecnológicas espetaculares. Rádio, vídeo, computadores, redes, CD-ROM fizeram sua apari
ção no mundo escolar, mas permanecem à margem. As ambições agudas e os desafios
novos clamam, antes de mais nada, por aquilo que chamávamos nos anos 60 de .potencial
humano.. Os professores não fracassaram em sua tarefa, nem individual nem coletivamente.
.Simplesmente. espera-se muito mais do que há 50 ou mesmo 20 anos atrás, em condições
mais difíceis. Isambert-Jamati (1985) mostra, por exemplo, que, até a década de 1950, o
fracasso escolar não era um problema social e não era objeto de políticas de educação. Não
havia problema para escolarizar todos os alunos. Desafio apenas anotado naquela época,
hoje ainda permanece vivo em regiões menos desenvolvidas da Europa e parece um sonho
no Terceiro Mundo. Querer ensinar e que todos obtenham êxito é uma utopia muito
moderna. O princípio de educabilidade defendido pelos movimentos pedagógicos inovadores
. .todos capazes., clama o GFEN . torna-se pouco a pouco o credo da facção mais
22
21no future) e degradação do sentido dos estudos; i) visando à democratização dos estudos,experts e criadores à custa de um grande número deCadernos de Pesquisa, nº 108, novembro/1999
progressista no interior dos sistemas escolares, com a aliança decisiva das forças de esquerda,
tomadas pela justiça social, e de forças mais gestionárias, desejosas de desenvolvimento
econômico e de substituição da mão-de-obra. Essa aliança é o motor da democratização dos
estudos em sentido amplo. Mas possibilitar os estudos prolongados a um grande número de
pessoas é tão-somente uma parte do problema. É preciso ainda que a maioria dentre elas
tenha êxito, isto é, encontre sentido no trabalho escolar e capitalize suficientemente as
aquisições para sobreviver ao longo do curso. Todos os sistemas educacionais se confrontam
com aquilo que em Quebec se chama
puro e simples dos estudos por alguns, renúncia a todo interesse e a toda ambição por outros,
que prosseguem, mas sem projeto, por falta de alternativa, acreditando sem dúvida que ir à
escola é mais interessante que ser um jovem desempregado.
A organização da escola em ciclos de aprendizagem e a individualização dos percursos
de formação não são, pois, reformas marginais (Perrenoud, 1994d, 1995). Elas enfrentam
um desafio que, sem ser novo, se torna urgente: passar da escolarização à formação de todos.
Em 30 ou 40 anos, vamos rir da linguagem e dos modos pedagógicos contemporâneos, como
rimos hoje das ingenuidades cientificistas e otimistas dos anos 1950-1960.
Teremos nós enfim operado uma ruptura irreversível? A escola mudou nesses 50
anos, mas diante do fracasso escolar, seu balanço é medíocre. O nível global de formação sem
dúvida aumentou, mas não na mesma proporção da complexidade das sociedades. E os
excluídos do sistema escolar são talvez mais excluídos hoje que ontem, sem dúvida porque
eles são, paradoxalmente, minoritários. Como mostra Hutmacher (1993), as classes médias
obtiveram o que queriam e a escala das desigualdades deslocou-se para o alto.
O problema da desigualdade perante a escola se reconstruiu, mas não é nem mais
simples nem mais gritante. Talvez se comece a entender que só se pode enfrentá-lo acelerando
a profissionalização e aumentando o nível de formação dos professores. Mesmo se isso
já foi entendido, nada assegura que haverá resultados: o espetáculo dos sistemas educacionais
confrontados com a crise sugere, sobretudo, que sua capacidade de antecipar está em
queda livre. É verdade que isso parece vantajoso, de um ponto de vista estritamente orçament
ário, frear, e mesmo fazer regredir a profissionalização do professor. É, a longo prazo,
economicamente e culturalmente absurdo, mas quem se preocupa com longo prazo nas
democracias?
décrochage scolaire [desconexão escolar], abandono
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E DESENVOLVIMENTO DE CICLOS
DE APRENDIZAGEM
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